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DATA DA PUBLICAÇÃO 04/08/2010 | Saúde e Ciência
Cachorros são animais, assim como nós
Um dos piores vícios jornalísticos é escrever sobre experiências pessoais como se tivessem interesse público. Relatos de conversa de repórter recém-chegado a uma cidade com o motorista de táxi local, entre outros, deveriam ser proibidos por emenda constitucional, é um direito fundamental do cidadão ser privado dessas inanidades. Mas para tudo há exceção.

A manhã de terça-feira começou, como de hábito, com uma caminhada com o terrier Snip pela praça Dolores Ibarruri ("La Pasionaria"), na zona oeste de São Paulo, um movimentado ponto de encontro de passeadores de cães. Um desses animais se chama Freud e pertence à raça gigante, escura e assustadora dos mastins napolitanos.

Apesar do nome e da categoria, passa por manso. Não raro anda solto, sem correia, convivendo de modo pacífico até com os cães que rosnam para ele.

Na ocasião, estava atado ao pulso da dona, o que não he impediu o ato insano e covarde: tentar morder Snip, com um décimo de seu tamanho. O terrier foi salvo pela panturrilha do dono, que foi parar no hospital.

Nada de grave, apesar da meia empapada de sangue. Limpeza no pronto-socorro, injeção de anti-inflamatório/analgésico, receita de antibiótico para a farmácia e prescrição de antitetânico para o posto de saúde. (Hospital sem antitetânico, pode?)

A acompanhante de Freud agiu com extrema gentileza e correção, depois do sangue derramado. Foi buscar o carro em casa, acompanhou a vítima no périplo de hora e meia, pagou pelo antibiótico. Mas foi incapaz de explicar o comportamento do cão, que nunca tinha mordido outro animal, racional ou não.

Quem sabe o que passa pela cabeça de um cachorro? Tratamos nosso animais de estimação como se fossem pessoas. E cometemos a imprudência de contar que se comportem como gente.

Não há mais Totós, Rex, Lessies, Jetos, Lilis e Pipos. As calçadas estão cheias de dejetos de Oscares, Antônias, Asdrúbales, Reginas e Isabelas de quatro patas. Depois das lojas de utensílios de luxo para culinária, pet-shops abarrotadas de fantasias caninas de "segurança" ou com emblemas da seleção devem ser o ramo comercial que mais dá dinheiro.

A raiz dessa confusão parece estar no que caberia chamar de "nostalgia da natureza" (ou, reformulando a expressão de Marx, "idiotia rural"). Os sintomas da patologia estão bem à vista: bacanas que se pavoneiam no asfalto com tratores de luxo apelidados de SUVs ("sport utility vehicles", os jipões), calçados para trilhas e montanhismo, mascotes de vários tipos (inclusive cobras e lagartos), engarrafamentos monstruosos para algumas horas de praia, campo ou montanha...

Quanto mais artificial, concretada e poluída se torna a vida do cidadão, mais os consumidores se entregam a simulacros de uma vida vizinha da condição animal. Parte da confusão, contudo, talvez deva ser atribuída também ao esgarçamento da fronteira antes nítida e categorial entre animais humanos e animais não-humanos.

Até certo ponto, esse outro tipo de confusão tem algo de saudável. Ela não brota de uma recusa da razão e da ciência, mas precisamente com elas. Quanto mais se estudam os animais, mais se constata que atributos humanos, linguagem, uso de ferramentas, altruísmo, senso de justiça, ensino deliberado, estão presentes neles, ao menos em germe.

Na encarnação passada desta coluna, em papel e tinta, escrevi com alguma frequência sobre o tema. Os textos estão reunidos na primeira seção, "Sobre gente e bichos", do livro "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).

Em 14 de maio de 2006, por exemplo, o tema foi reconhecimento de "nomes próprios" (assobios característicos) por golfinhos da espécie Tursiops truncatus (se for assinante da Folha ou do UOL, leia o texto aqui). Em 9 de dezembro de 2007, foi a vez de outra espécie de boto, o tucuxi (Sotalia fluviatilis), cujos machos lançam mão de prendas estranhas, como ramalhetes de ervas aquáticas e pedaços de pau, para conquistar a atenção e o favor de fêmeas (a coluna pode ser encontrada aqui).

É fácil ainda esquecer que os próprios seres humanos são animais e se comportam como tais com frequência lamentável. E não só quando se matam ou agridem outros humanos ou animais de espécie diversa.

Ingerimos chocolate, açúcar, gordura em doses tamanhas que os transformam em venenos. Perdemos a cabeça por um rabo de saia ou similar. Transformamo-nos em feras sob a carapaça de um automóvel.

Damos palmadas em nossos filhos, ou surras em regra. Alguns até agradecem por isso, certos de que aprenderam alguma coisa com a dor e a humilhação. Pensando bem, animais de quatro patas não seriam capazes de fazer isso com tanta regularidade e método.

É pouco provável que a psicologia evolucionista (há três décadas seria chamada de "sociobiologia") consiga explicar comportamentos tão humanos e irracionais por meio apenas de inverificáveis vantagens competitivas paleolíticas que tenham conferido a nossos ancestrais (açúcares e gorduras, por exemplo, garantem reservas nutritivas para momentos de escassez). Mas não resta dúvida de que a seleção natural reservou aos humanos modernos algumas peças cruéis em matéria de (des)adaptação.

Entre esses mecanismos que escapam à razão, porém, haveria algumas coisas boas. Como aquilo que o grande naturalista Edward O. Wilson batizou como "biofilia", programas genéticos que nos inclinariam em favor da natureza, de sua contemplação, comunhão e preservação.

Pode ser. Já Freud não explica nada, morde. E dói pra burro. Dá o que pensar.

MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp) e responsável pelo blog Ciência em Dia (Ciência em dia).

Por Folha Online
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